Mil Estrelas

Eu tinha quase quinze anos naquela época, coisa de esperar mais uns quatro meses e meio, já me sentia uma adulta responsável e independente. Gostava de exibir essa imagem de garota durona e dona de si para os outros, mesmo quando na verdade, por dentro, eu era apenas mais uma menina assustada, sozinha, perdida num mundo em que não via como me encaixar e não me sentia feliz. Eu odiava isso. Detestava me sentir sozinha.

Até mesmo quando estava na escola ou em algum curso que meus pais me matriculavam, com todas aquelas pessoas em grupinhos separados conversando qualquer coisa a minha volta. Mesmo assim, eu me sentia mais sozinha entre aquelas pessoas do que na nossa casa, quase sempre vazia porque meus pais estavam continuamente “trabalhando demais para que possamos manter nosso padrão de vida e nossa casa grande e espaçosa no melhor bairro da cidade”; o que também quase sempre resultava em horas extras e finais de semana que não existiam.

Ao menos em casa eu tinha meu peixe dourado, eu o chamava de Flupi por não saber se era macho ou fêmea, não que isso importasse, mas meu peixe dourado tinha o costume de ser um bom ouvinte e um companheiro fiel que não saia andando por ai mostrando o dedo no meio depois de uma briga.

Eu também tinha a minha avó. Ela sempre estava feliz, vendo sempre o lado bom das coisas e desejando e fazendo o bem para os outros, era uma senhora cheia de energia que vivia viajando o mundo procurando por histórias e lendas antigas, comidas típicas e qualquer coisa que tivesse o “pulsar da vida”. Ela mantinha seus cabelos sempre brancos, porque para ela, era como se todas as cores do mundo vivessem ali. Eu nunca entendia o que ela queria disser com aquilo, mas adorava o jeito e a empolgação dela de falar.

Além disso, quando a vovó voltava de qualquer viagem, ela trazia presentes somente para mim, o que sempre deixava meus pais com um certo ciúme e reclamando baixo pelos cantos. Às vezes, ela brigava com eles por causa das reclamações infantis e dava broncas pesadas neles, tarde da noite, por se dedicarem mais aos empregos do que a família e que eles deveriam esquecer um pouco as maletas e paletós. Ela nunca aceitava os argumentos deles.

Estar com minha avó me fazia esquecer da solidão, eu ficava animada e feliz ouvindo as histórias das viagens, vendo e revendo fotos, aprendendo receitas de comidas diferentes e outros costumes que o mundo moderno parece ter se esquecido de manter e vez ou outra ela comentava de um casal de amigos que ela costumava encontrar por ai. Muitos anos mais tarde, eu encontrei uma carta sua onde ela contava tudo o que não podia contar naquela época sobre o casal, mesmo adulta fiquei uma noite sem dormir.

Sempre antes de uma viagem, ela vinha me visitar para se despedir e prometer voltar com novos presentes e novas histórias e que era para eu preparar pão de queijo e chá de morango. Numa dessas despedidas, ela me entregou um jarro de porcelana irlandesa. Eu não via diferença nenhuma daquele para qualquer outro pote que já tivesse visto na vida, então, ela me contou o que eu deveria fazer com aquele jarro. E que aquele seria o nosso segredo, jurado de dedo mindinho e por inteiro.

Eu ainda me lembro de todas as palavras que ela me falou naquele dia.

“Alexia, minha querida, um dia eu vou te levar para conhecer a Irlanda. Aquela terra tem tons de verde que eu nunca encontrei em nenhum outro lugar do mundo, tudo é carregado de muita vida lá, mesmo que aquele clima Bretão tente mostrar o contrário; jamais acredite naquela chuva constante e em toda aquela neblina esquisita deles. É tudo uma fachada para afastar as pessoas que não respeitam a natureza e nem a própria alma. E é bem efetivo no fim das contas. Contudo minha pequena, eu estou te dando esse jarro por outra razão. Lá no extremo interior da terra dos Leprechauns, os verdadeiros, que são bons e justos não inventados que os vingativos e feios; eles contam uma lenda sobre um grupo de entidades que depois se tornariam os protetores e mentores dos antigos celtas. Essas entidades depois de anos receberiam o nome de Guardiões. Sim, eu também acho que faltou criatividade na escolha do nome, mas toda história tem sua simplicidade, significado e segredos. Uma velha senhora, mais velha do que eu inclusive, me contou vários contos sobre os Guardiões e em como eles só aparecem nos lugares sagrados e em datas especiais, praticamente um agendamento místico. E tem essa história que me lembrou de você e me fez te trazer esse jarro. Certa vez, uma dessas entidades apareceu para uma garota com mais ou menos a sua idade em um dia comum no meio do campo; o guardião apenas apareceu para ela oferecendo de presente um pote de fina porcelana, prometendo que se ela buscasse e coletasse no jarro mil estrelas do Universo, ele realizaria qualquer desejo daquela menina, não importava o que seria o desejo, ele realizaria para deixá-la feliz. É por isso, minha pequena flor, que estou te dando este pote chique. Mesmo que não me diga, eu sei que você tem passado por alguns problemas e dificuldades, e que a sua pouca idade faz isso tudo parecer muito maior do que é e agora que sua adolescência está cada vez mais presente, pode ser que as coisas pareçam mais complicadas ainda, então tenha calma e jamais busque por arrependimentos por querer, mesmo que pareçam legais e divertidos a primeira vista, é o que posso te dizer agora. Eu deixei no seu quarto, algumas instruções de como você pode fazer estrelas de papel, você pode gastar um pouco do seu tempo livre aprendendo como fazê-las, não é difícil. Então, sempre que você tiver um daqueles dias que te cause muita dor e que te dê vontade de fugir e desistir de tudo, faça uma estrela e guarde no pote. Quando completar mil estrelas, faça um pedido e logo tudo ficará bem. Mas apenas uma estrela por dia e somente no dia em que você realmente não conseguir mais resistir, está bem?”.

E passava a mão entre meus cabelos, num cafuné que às vezes sinto falta.

No começo, embora eu amasse ouvi-la, eu não levei a sério toda aquela história sobre guardiões místicos e colecionar estrelas, então eu deixei o jarro de porcelana em cima da cômoda do meu quarto por que era uma peça bonita, mesmo que não combinasse com nada ali. Às vezes, eu olhava para o pote vazio e pensava que preencher todo seu espaço seria a tarefa mais simples do mundo já que eu sempre me sentia sozinha, tirando minha avó e a Flupi, a solidão era minha companhia constante. E foi assim que eu fiz a primeira estrela. Que amassei em seguida, afinal, por mais que meus pais trabalhassem demais e quase nunca estivessem em casa, toda manhã quando eu acordava e via um nó em duas pontas do lençol. Era a maneira deles de mostrar que estiveram ali e que se importavam comigo. Costumava ser chato não passarmos mais tempo juntos, mas naquele momento percebi que eles se esforçavam bastante nos detalhes para cuidar de mim, por isso, desisti daquela primeira estrela e a joguei fora.

Para falar a verdade, foi muito difícil colocar as primeiras estrelas de papel no jarro. Quando algo me aborrecia, eu começava a dobrar uma estrela pensando no que tinha acontecido, percebia que não tinha sido tão ruim assim e jogava o papel fora, deixando para lá. A primeira estrela, que não guardei no pote, mas sim em um pequeno porta-joias, só foi feita por causa de um passeio da escola. Na turma da sala ao lado da minha, tinha uma menina chamada Jeannie, que acreditava ter nascido em outro planeta. Ela era bem gentil e alegre para alguém que era ignorada pelos outros, assim como eu. Sempre desejei me aproximar dela, mas tinha coragem para isso. No dia do passeio, alguns meninos da turma dela jogaram seu colar numa árvore e ela caiu tentando resgatá-lo, precisou ficar internada por algumas semanas por ter quebrado um braço e ter de usar um colar cervical por mais outras semanas depois da alta. A primeira estrela, então, foi para Jeannie, pois não havia nenhuma razão para tratarem ela tão mal. Na noite seguinte, fiz uma estrela por fazer e coloquei no pote, em homenagem a Jeannie, deixando a outra estrela guardada por ter sido a primeira verdadeira.

As outras estrelas também levaram um pouco de tempo para ir ao jarro e minha avó gostava de comentar, entre uma viagem e outra, que ficava aliviada ao ver que o pote não estava cheio, ela dizia que eu estava começando a entender o que ela falava. Realmente, as estrelas de papel demoraram em fazer algum volume, eu apenas as fazia quando queria de fato desaparecer, como quando Flupi morreu, ou no baile da escola que ninguém me convidou e eu fiquei sentada sozinha em um dos cantos do ginásio, a mudança dos antigos vizinhos que tinham uma pequena menina que brincava toda tarde na grama do quintal com seu cachorrinho, ou quando meu pai foi transferido de escritório, dias antes do meu aniversário de quinze anos, e teve de passar alguns anos em outro país, mesmo sob os protestos da minha mãe que consegui ouvir do meu quarto. A minha festa de debutante também ganhou sua estrela, já que se resumiu em um celular dado via correio pela vovó e um pequeno bolo de pote que minha mãe havia deixado dentro do aparelho de micro-ondas acompanhado de um bilhete se desculpando por ter tido de voltar ao trabalho para resolver urgências e não sabia quanto tempo iria demorar.

Com o passar do tempo eu estava aprendendo a gostar mais da minha companhia e coisas como não ir a passeios da escola, ou ter ido sozinha ao show da minha banda favorita não chegaram nem perto de ter sua estrela de papel, no começo, esse tipo de coisa me deixava chateada, mas depois eu até ficava feliz de não ter ido a lugares ou perceber que fazer algumas coisas quando estava sozinha era bem mais proveitoso que estar “rodeada de pessoas ruins de alma”, como vovó dizia. Anos depois, uma dessas pessoas teve sua estrela inclusive, a única que fiz para este tipo de pessoas. Vovó estava certa nisso também.

Algumas das estrelas de papel foram difíceis de fazer, pois eu não entendia como algumas pessoas podiam ser tão desumanas com as outras e isso me causava uma dor forte e mágoa imensa. E aconteceu comigo na vez em que roubaram meu diário e espalharam para toda a escola o nome de um garoto que eu achava inteligente e divertido, mas muito mais tímido que eu; ou quando um grupo de meninas disse que um garoto estava gostando de mim, mas era tudo uma armação para tirarem sarro de mim, embora algumas coisas ditas tenham sido mais ofensivas do que piadas de mau gosto.

Depois disso teve a notícia mais marcante até aquele momento da minha vida: vovó estava doente e os médicos a proibiram de fazer muitas coisas.
Isso significava que vovó não poderia mais viajar.

Por um tempo, fazer aquelas estrelas de papel aliviava a mágoa que eu cismava em carregar no meu peito e eu ia aprendendo o que realmente era importante e o que eu devia deixar para lá e a vida estava bem mais colorida do jeito que estava, eu não tinha muitos amigos mas os poucos que estavam ali eram de verdade e eu sorria bastante comigo mesma quando fazia as coisas que eu gostava e que de certa forma me tiravam por momentos do mundo real. Mas quando vovó ficou doente, nada mais pareceu me importar, a vida voltou a ser cinza novamente. E eu deixei de fazer as estrelas de papel. Eu tinha dezessete anos e em mais cinco meses faria dezoito. Sai da escola e fui direto para o hospital buscar vovó e conversar com os médicos.

Antes daquela noite, o jarro estava com novecentas e noventa e seis estrelas.

A doença dela rendeu uma estrela de papel pesada naquela noite.
Minha avó continuou sendo alegre mesmo depois do diagnóstico, ela dizia ser alguém realmente especial no mundo, já que uma doença extremamente rara tinha resolvido morar nela e agora poderia, enfim, se mudar para a casa dos fundos e passar mais tempo com sua neta. Claro que ela não seguia a risca as ordens médicas e fazia viagens curtas de vez em quando, sempre acompanhada do mesmo casal de amigos de outrora. Enquanto isso, eu me isolei de tudo e de todos, nem mesmo ia visitá-la, simplesmente eu não queria fazer nada e me revoltei com o mundo, o que me colocou em algumas confusões complicadas de resolver, e nem por isso voltei a fazer as estrelas de papel.

Vovó continuava indo me visitar e com o tempo eu voltei a visita-la. Mesmo sendo obrigada a viver com vários remédios ela ainda permanecia sorrindo e contando suas histórias. Estar com ela continuava sendo confortável e mesmo as lições de moral que ela me dava não pareciam broncas, mas sim conselhos de quem se importa. Ela fazia questão de lembrar que quem estava doente era ela, não eu.
“A vida, minha pequena, é algo raro, poucos entendem isso.” – Ela falou uma vez. “Não é raro porque acaba.

Não é raro porque o tempo é curto. Não. É muito, além disso, Alexia, mas ao mesmo tempo muito mais simples do que se pensa. É um belíssimo paradoxo. Este mundo é uma grande oportunidade de aprendizado, algumas pessoas precisam de mais lições que outras e isso não significa que alguém é melhor ou pior que o outro. Não deveríamos ter o direito de apontar o dedo para apontar os defeitos nos outros, mesmo aqueles que são ruins de alma nos ensinam algo valioso. O que você, minha neta, não pode é seguir pela cabeça deles, mesmo que não perceba a influência que eles podem causar, pois quando você reparar pode ser tarde demais, desenvolveu vícios, desrespeitou suas próprias regras, seu corpo e quem você realmente é. Mas mesmo assim, eles são os que mais precisam de ajuda, embora não a nossa. A vida é muito mais do que eles te mostram, muito mais do que você ou eu conhecemos. Fui eu quem ficou doente e foi você quem se revoltou e foi para o que o mundo tem de pior. Não deveria ser o contrário? Eu sempre quis passar mais tempo com você Alexia, mas eu pertenço ao bom mundo, preciso estar em contato com a natureza, descobrir como a vida funciona. Eu já viajei demais, quero aproveitar a oportunidade de estarmos juntas, ainda tenho muita coisa para te contar e ensinar, este corpo velho está sim com uma doença que transforma os ossos em coisas frágeis e os músculos em carne seca, mas minha mente ainda está intocada e eu consigo me virar bem sozinha. Ainda tenho bastante tempo para aproveitar e te deixar dicas para o futuro. Mas só o farei quando você deixar toda essa raiva infundada para lá.”

Naquela noite, uma estrela de papel molhada de lágrimas de arrependimento e sabedoria tardia ganhou seu lugar no pote. O passado, mesmo que recente, se tornava história em um jarro com novecentas e noventa e oito estrelas de papel.

Novecentas e noventa e nove dias depois quando eu percebi quão idiota eu tinha sido em algumas situações, dei de ombro depois de pensar, mas fiz a estrela como forma de respeito.

E então, naturalmente, esqueci por um tempo do jarro.

Minha revolta havia passado alguns dias depois e agora era eu quem visitava minha avó, numa inversão natural da vida. No meu aniversário de dezoito anos eu a levei junto com Jeannie e o namorado a uma viagem curta para ver o festival de flores na cidade que fica depois da nossa, seguindo pelo norte; quando voltamos meus pais disseram que iriam diminuir novamente o ritmo do trabalho para ficarmos mais tempo juntos, o que já vinha acontecendo há algum tempo. Fiquei feliz mesmo assim. Alguns dias depois Jeannie me confidenciou que um amigo nosso estava interessado em mim e eu confesso que fiquei um pouco sem graça no começo já que assim como nós duas, ele também era taxado de estranho, ao menos ele escrevia muito bem. E mesmo sob os protestos dela e da vovó, preferi esperar um pouco mais antes de decidir algo sobre ele. Eu me sentia bem comigo mesma novamente, tinha aprendido a apreciar o silêncio que meu quarto oferecia, era meu refugio particular, nenhum barulho ou incômodo exterior me alcançava ali, era o lugar ideal para diminuir o ritmo, para parar de pensar um pouco em como ajudar os outros e pensar apenas em mim. Cuidar de mim. E depois contar tudo para minha avó, que continuava espalhando vida, mesmo que sentada na sua cadeira de rodas com seus cabelos brancos, roupas elegantemente leves e um perfume leve de rosas.

Um mês depois ela me chamou e ficamos conversando durante a madrugada toda, no final ela me deu um pequeno baú lacrado e disse que na hora certa, a magia iria acontecer.

Um dia depois, ela foi para o hospital e não voltou mais.

Meus pais ligaram do hospital avisando que teriam de passar a noite lá para resolver os procedimentos necessários e que eu encontraria comida na geladeira. Eu me sentia sem rumo, voltei a ser uma criança de quatorze anos, perdida e sozinha num mundo que eu não fazia parte, sem um pote de porcelana para colocar estrelas de papel. Me tranquei no meu quarto e chorei como quando Flupi havia morrido, como quando leram meu diário no pátio da escola, como quando fui presa por estar bêbada e ter sido abandonada pelos que se diziam meus amigos, perdendo por um longo tempo a confiança do meu melhor amigo no caminho. Como vovó dizia, “o preço é alto; os ruins de alma vão te colocar em problemas e nenhum deles dirá que te conhece”.

Eu me sentia uma criança sozinha numa floresta fria e escura, com lembranças que não doíam mais voltando a doer muito, fazendo com que eu quisesse explodir e sumir, o silêncio da casa gritava dentro de mim e eu me sentia perseguida por lobos que em breve me alcançariam e rasgariam minha carne e ninguém viria me salvar, nenhum amigo, nenhum caçador, nenhuma avó. Eu sentia raiva, dor e revolta. Queria quebrar todo o quarto e quebrar aquele jarro de porcelana irlandesa que nunca conseguiu se harmonizar com a decoração do quarto. E ainda por cima tinha uma história sem final. Eu me sentia uma idiota por acreditar por tanto tempo em uma história contada para crianças. Não existiam seres mágicos, o mundo era o que era, sem cor, sem pessoas que querem seu bem apenas por querer. Eu me sentia boba por acreditar que alguém poderia colocar estrelas de verdade num pote qualquer. Eu era apenas uma garota sozinha e abandonada pela própria avó, gritando gritos abafados no travesseiro cada vez mais molhado de lágrimas até adormecer sem perceber.

Acordei e ainda era madrugada, estava com fome e me sentindo um pouco fraca por causa disso, lavei o rosto e comi qualquer coisa que estava na geladeira. Fui ao banheiro e pintei uma mecha do meu cabelo com tinta branca, aquela seria minha homenagem para minha avó, um pedido de desculpas e uma maneira de manter sua memória viva em mim. Havia enfim entendido a razão dela não pintar os cabelos.
Voltei para o quarto, ainda um pouco anestesiada, e peguei o jarro de porcelana com as estrelas de papel nele. Sentei na cama olhando para ele e me lembrei do porta-joias onde guardei a primeira estrela que tinha feito. Acabei levando o pote e o porta-joias para a varanda, sem nem saber o que estava fazendo peguei o celular e mandei uma mensagem para Jeannie e outra pedindo desculpas para meu amigo, o mesmo que Jeannie disse que gostava de mim e que mesmo sem confiar mais em mim permaneceu ao meu lado; quando fosse de manhã, se eu fosse honesta para valer, ele voltaria.

Sentei no chão da varanda e coloquei a estrela de papel dentro do jarro. Eu tinha vontade de arremessá-lo longe para acabar com aquilo, mas eu só conseguia abraçá-lo. Eu não queria saber de lendas antigas, de guardiões dos celtas, nem de nada. Estava pagando um tributo à minha avó e pronto. Não conseguia mais chorar, não conseguia mais sentir raiva, eu só conseguia ficar abraçada com aquele pedaço de porcelana, me sentindo vazia. Um vazio que eu conhecia muito bem. O mesmo vazio que me acompanhou até o dia que ganhei o jarro.

E eu ainda me lembrava da conversa daquela tarde.

“E então querida, o que você pediria para o Guardião?”
“Não sei vovó. Você sabe se a menina conseguiu juntar as estrelas?”
Eu ainda me lembrava de tudo.
“Ah, ela conseguiu sim. Ela partiu como uma menina e voltou como uma poderosa, inteligente e bela mulher. E saiba que assim como você, ela não era bela só por causa da sua aparência.”
“E o que foi que ela pediu vovó?”
Algumas coisas voltavam a fazer sentido novamente.
“Acho que ninguém sabe querida”
“Como assim, vovó?”
“Ora, essa parte ninguém me contou, Alexia”
“Mas a senhora não quis saber? Não teve curiosidade?”
“É claro que tive. Mas uma das belezas da vida é o que se vive, a aventura vale mais que o tesouro.”
“Não faz sentido.”
“Não é para fazer. Um dia querida, quando você for mais velha, vai fazer algumas bobagens, talvez seja até natural ter que fazê-las; mas saiba que quase tudo tem um jeito de se reparar e que mesmo assim, isso não significa que tudo voltará ao normal. Nossa vida é feita de ciclos e devemos aprender com eles para crescermos, você conhecerá pessoas de todos os tipos e talvez as melhores não continuem por perto, mas sempre terão você no coração, por que essas são pessoas de alma boa, assim como você. Eu sei que é um pouco difícil de entender isso agora, às vezes até para mim é. Mas acredite querida, o passeio vale a pena, sofrer por tudo que não aconteceu como queríamos é desnecessário, todos vamos sim sofrer por algo, mas não pode ser para sempre. Não se preocupe com o que ela pediu, apenas saiba que assim como ela, você nunca estará sozinha.”

“- Ela era uma ótima pessoa, não era?”

Por um momento, meu coração parou. De repente, um homem totalmente branco e de branco estava sentado no parapeito da varanda, sorrindo para mim. Eu só consegui me encolher no canto da parede, segurando o jarro de porcelana, como se quisesse protegê-lo daquele intruso-invasor.

“- Quem é você? – Perguntei assustada.”
“- Um amigo. Ao menos da sua avó, gostaria de ser seu amigo também.”
“- O que?”
“- Por favor. Não precisa ficar assustada, sei que é estranho. Eu conhecia Aine e bem, agora ela partiu para o outro mundo. E você coletou as mil estrelas. Tudo que eu posso fazer é te oferecer um pedido que realizarei sem hesitar.”
“- Sem chance. Eu estou sonhando, só pode ser isso. O que você acha que eu sou? Eu não sei como você subiu até aqui, mas vou chamar qualquer um para te levar daqui. Saia.”
“- Seu nome é Alexia. – A calma dele era impressionante – Você ganhou este jarro de porcelana quando tinha catorze anos e se sentia sozinha e triste. Seu peixe dourado se chamava Flupi e você sempre se imaginava vivendo as histórias que Aine te contava, inclusive a do fio vermelho amarrado no seu dedo.”
“- Como você sabe de tudo isso?”
“- Eu sou um Guardião, Alexia. E se ainda não acredita em mim, vejamos, pelo horário, hoje é sábado. Um dia comum para meu povo. Está é sua varanda e não tem nada de especial nessa cidade pacata, mas confortável. Nem mesmo a Lua é propícia para nenhum ritual, está muito bonita, mas apenas isso. Então, que tal olhar para o pote e ver quantas estrelas de papel têm nele.”

O pote estava vazio. Apenas uma suave luz prateada brilhava e dentro dele e eu já havia aceitado que tinha ficado louca.

“- E o que você quer, afinal?”
“- Te ajudar.”
“- Como?”
“- Por todos esses anos eu acompanhei sua jornada até aqui, vi todas as suas dores, toda a sua solidão que te machucava. E também vi todas as suas alegrias, conquistas e aprendizados. Eu estou aqui para realizar qualquer desejo que você queira. Que seja uma vida perfeita sem solidão, ou outro mundo qualquer onde você não tenha que se despedir da Aine. Basta você pedir.”
“- Antes disso, pode me responder uma coisa?”
“- Claro.”
“- Qual foi o pedido da primeira garota?”
“- Foi algo simples” – disse sorrindo – “Ela não pediu nada de riqueza ou sonhos de amor. Ela simplesmente pediu para viver bastante. Ela queria conhecer o mundo e viver até encontrar alguém de boa alma para ensinar que a vida pode ser simples, maravilhosa e que tem valor.”
“- E você a atendeu?”
“- Guardiões sempre cumprem com suas palavras.”

Naquele momento, eu me senti aliviada. Toda a minha vida passava novamente pela minha cabeça, me lembrei de cada estrela, sem a dor de antes. Lembrei até mesmo das estrelas que não foram para o jarro. De repente, tudo fazia um sentido absurdo e era fácil de entender tudo que minha avó me falava e eu nunca havia entendido. Repentinamente, eu percebi quantas cores existiam no mundo e dentro de mim.

“- Ela sempre dizia que você não estaria sozinha, não é?”
“- Sim, falava. Acho que eu já sei o que quero pedir. – Eu disse sorrindo.”
“- Estou ouvindo.”
“- Eu…”

Acordei na manhã seguinte, ainda na varanda, mas com o jarro de porcelana colocado cuidadosamente em pé ao meu lado.

Dentro dele, havia apenas uma estrela de papel. Parte dourada como o Sol e parte branca como a Lua.

Guardei a estrela no porta-joias, vi duas mensagens pendentes de resposta no celular e a mecha branca no meio dos meus cabelos ruivos, através do reflexo do espelho.

Eu me sentia leve e feliz. Como nunca havia me sentido antes.

Até hoje, eu permaneço assim, leve e feliz. E mesmo com a idade avançada, minha neta me ajuda a manter meus cabelos ruivos, tendo o cuidado de deixar uma mecha branca intocada.

 

 

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